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Práticas Contemplativas na Ação I: Contemplar

Foto do escritor: Rita LançaRita Lança

Contemplar, um verbo a conjugar no presente


As práticas contemplativas são estratégias transversais, presentes na minha vida e no acompanhamento que proponho como Doula das Transições. Teço este artigo como uma introdução à contemplação.


Não pretendo que este artigo seja uma súmula conceptual e/ou teórica acerca de correntes que abordam a contemplação. Resultou de um exercício de escrita livre, guiada pelas intuições que me povoam e que resultam da minha exploração pessoal, que perpassa toda a minha vida. Diria mesmo que sou fruto de uma vida contemplativa na ação, como a querida Ir. Goreti Faneca um dia me descreveu.


Portanto, este artigo é visceralmente auto-referencial e procurei escreve-lo desde um senso prático, desvelando retratos vividos e pistas que possam inspirar-vos a ter a contemplação, no quotidiano, à mão de semear.


Contemplar, a prática de reunificar


A contemplação está nos teus olhos.


Quem não vê também contempla. Os teus olhos estão espalhados pelo teu corpo, pelos teus órgãos, são os poros através dos quais a vida flui. Não falo da tua vida, falo da vida que tudo perpassa, esse sopro de energia que move, sem esforço, tudo o que existe. Vivo ou morto, perante este sopro, tudo é movimento, mudança, transformação. A realidade binária é uma construção nossa, na vida tudo é uno.


A prática de contemplar é um assomo a essa unidade, à interconectividade e interdependência. É “um estar à janela a ver-se passar na rua” (que Auguste Comte, filósofo francês, afirmou não ser possível). Não é por acaso que na Natureza tendemos a experimentar harmonia, ao sentirmo-nos conectados, parte.


Em contraponto, o suicídio, como demonstrou Émile Durkheim, sociólogo francês - é explicado pelo sentimento de desintegração do todo, ou como desenvolveu Albert Camus, filósofo argelino – resulta de uma estranheza face ao mundo, de uma necessidade de familiaridade sentida como não correspondida, enredada numa nostalgia da unidade com o mundo.


Digo que a contemplação está nos nossos olhos no sentido de a considerar uma escolha concreta, uma busca por estar presente com o que está a todo o instante lá, diria mesmo, à espera desse reencontro. À espera desse olhar que enceta a imanência através do rosto, que revela a alteridade, segundo o brilhante filósofo lituano Emmanuel Lévinas.


Contemplar é um meio de nos ligar à vida, ao mundo, ao todo do qual somos parte integrante. É um avivar dessa consciência experimentada. É um recarregar-nos no fluxo da energia vital.


Nesse processo de reunificação, por vezes, pudemos experimentar dor e angústia, pelo que presenciamos. É também uma escolha não repelir essa dor, enfrentar a realidade, o sofrimento desde a nossa bondade essencial, como bem nos apontam a Ecologia Profunda e o Trabalho que Reconecta. Se a dor for muito avassaladora pode haver a tendência para a fuga, que pode assumir diversas configurações e, no extremo, desaguar numa atitude de desencantamento perante o mundo e de fechamento na sua concha do sofrimento.


Acredito profundamente que a contemplação contém em si o antídoto para este desencantamento e para uma abertura à dádiva que a vida é, desde a gratidão. E a gratidão é como um coração com asas, que pulsa pelo mundo e nele argamassa o seu ninho.


O Caldeirão da Vida - Gana, Africa
O Caldeirão da Vida. Gana, África.

As memórias contemplativas


Lembro quando a minha avó Rosa preparava água de rosas para lavar os olhos do meu avô Joaquim. Eram aquelas rosas mais perfumadas, de um rosa pastel desmaiado, que cresciam em dois lugares no quintal... um bem escondido e abrigado, numa esquina para a rua da Teresa, na orla da sombra das grandes laranjeiras e outro, junto ao poço, entre a romãzeira e a banheira real, berço dos girinos rodopiantes.


A minha avó não se demorava na colheita das rosas mas a minha pueril curiosidade prolongava aquelas decas de tempo por uma eternidade. Depois de separadas as pétalas, fervia-as num púcaro e ia lavar os olhos ao avô, para aliviar as maleitas.


Lembro-me de andar atrás dela e de observar o modo preciso e silencioso com que levava a cabo cada fase daquele precioso ritual, aquele néctar líquido que nutria os olhos gastos e sábios do velho e as labaredas dos olhos incandescentes da catraia.


A contemplação, tocar o intangível através do tangível


A contemplação nasce do tempo habitado com vagar, irradia da disponibilidade para estar em presença, deixando-se tocar pela vida que pulsa em tudo.


A contemplação é alimento para a alma, é uma viagem sem destino mas sempre com embarque garantido, a cada instante, em qualquer lugar.


A contemplação é a desconcertante presença do presente, que se impõe impune à nossa tendência para cirandarmos pelo passado ou pelo futuro, é um chamado à realidade do aqui e do agora.


É um chamado à beleza, ao sentido, ao intangível através do tangível, ao mistério que sussurra, ao que pressentimos existir mas que se dissolve como pirilampos que brilham e se misturam no breu da noite.


É a certeza do infindável que a vida é, continuamente, no fluxo natural da “respiração cósmica” (Chuang Tse) que tudo permeia.


O léxico da contemplação


Do léxico da contemplação fazem parte as palavras - parar, debruçar, fitar, sentar, andar, natureza, desfiar, aproximar, cheirar, silêncio, escutar, despertar, habitar, quotidiano, estranhar, refletir, tocar, existir, tranquilidade, pueril, suspirar, dança, vibração, linguagem, espanto, surpreender, sonhar, olhar, exclamar, saber, espirrar, largar, revelação, esperar, balbuciar, libertar, entranhar, trivial, desaprender, maravilhamento, viajar, espalhar, ver, infinito, poesia, flutuar, simplicidade, agarrar, liberdade, ser, descansar, pulsar, transcender, música, estar, acreditar, narrar, presença...


Recordo, contemplações ilustradas:


  • o mote inspirador da performer francófona Louise Desbrusses - “Silêncio Escuta Presença”.

  • o trecho da canção “Fala do Índio”, do álbum Missangas do João Afonso, um relicário de contemplações vivas, que me acompanhou durante anos - “O que é a vida? (…) É sombra que corre na erva e se perde ao fim do dia”.

  • o delicioso conto do Mário Dionísio - “Assobiando à Vontade”.

  • a foto “O Caldeirão da Vida” - Os resquícios da preparação do óleo de palma foram a lente contemplativa, no dia em que aprendi a fazer fufu com a Letícia, no Gana.


Caminhos possíveis para a contemplação


Creio que a contemplação suscita criar condições para este espaço-tempo habitar, disponibilidade interior, atenção, plano prático para reaprender, criar momentos quotidianos para parar.


Já vivi intensamente os espaços idílicos da contemplação e cada vez mais me adentro na contemplação plena, que dispensa um qualquer lugar idílico para se manifestar. Convido-a a sentar-se comigo, onde quer que esteja, e em tudo há tanta beleza para ser apreciada. Tudo é potencialmente belo, a beleza está nos meus olhos. Em tudo despertar essa aurora do novo de que falava Miguel Torga nos seus Diários, desafiando-nos a inaugurar cada dia com essa atitude, caiando a nossa vida com essa pureza.


Olhar para o chão, olhar para o céu, cheirar, sorver narinas adentro o tutano do lugar, tal como se apresenta. É odor de esgoto, é odor de esgoto. É aroma de flor de nespereira, é aroma de flor de nespereira. Cheirar o que é, sem destrinça. O nariz, os receptores olfactivos são curiosos, aprender com eles a instigar a nossa errância. Tocar, sentir as texturas. Deixar-se acariciar pela brisa. Sentir o corpo estremecer com frio.

Comer com sagacidade, sem pudor, eroticamente, como nos incita o artista plástico Pedro Cabrita Reis.


Estar só. Permanecer, sem julgamento. Observar a realidade a manifestar-se. É preciso apaziguar-se por dentro para ver a tela da vida a escorrer, como uma tinta que vai colorindo por onde passa. Na contemplação, a liquidez e fluidez da realidade vestem-nos conscientemente do que vemos, inundam-nos do que somos, em interexistência.

Deixar-se permear pela vida, consciente, é pura contemplação.


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