Práticas Contemplativas na Ação II: A Poesia como Convite à Contemplação
- Rita Lança, Cristiana Oliveira e Laura Marques
- 25 de jun.
- 7 min de leitura
Este artigo, de natureza colaborativa e assente nas nossas subjetividades, enceta uma série dedicada a um tronco de esferas e/ou práticas que convidam à contemplação e dá sequência ao anterior, introdutório acerca de Práticas Contemplativas na Ação I: Contemplar.
Partindo das nossas vivências contemplativas através da poesia, procuramos espelhar várias dimensões, num convite a contemplar a vida poeticamente.
Para quem quiser escutar estas palavras e os seus ecos, encontra o áudio no final do artigo.
Contemplação poética das entranhas
Por Cristiana Oliveira
eu sou lava e sol ardente
em contínua combustão.
(José Carlos Soares)
A contemplação poética é uma contemplação dos nossos vulcões interiores eruptivos. É uma contemplação emocional da nossa condição e natureza humanas, pois somos matéria em contínua combustão.
Tocar na lava queima. Olhar o sol de frente cega. Contemplar um vulcão fascina e assusta, tal como contemplar as nossas entranhas. O ritmo e silêncio vertiginoso da poesia faz-nos dançar entre os versos e reversos dos nossos abismos. E nós, como bailarinos profissionais de ballet, almejamos o equilíbrio perfeito, com pontas rígidas e frágeis, em pequenos e rápidos movimentos, para fugirmos da lava que escorre até às profundezas do nosso ego mais dantesco.
Fugimos e corremos ao som de Stravinsky, mas devemos permanecer e caminhar no andamento de Chopin: “Faz-se o caminho ao andar” (Antonio Machado). A arte de caminhar (Erling Kagge), isto é, de dar um passo de cada vez é também um exercício contemplativo das viagens interiores. Também das viagens poéticas. Ao jeito de Pessoa, sentimos, logo viajamos.
Desconstruímos fronteiras construídas. Transbordamos do nosso templo para contemplarmos o rio de palavras desconhecidas que desagua de dentro para fora: “Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá.” (Ez 47,9). A imaterialidade poética é pão para o espírito e vinho para o corpo. Sentar-se à volta da mesa espiritual com poesia é saborear heterónimos infinitos. Declamar um verso em voz alta é expurgar a melancolia. Cantar um soneto camoniano é soltar as fagulhas do amor invisível.
Além de contemplativa, a poesia é também sensorial e imersiva e por isso estimula e apura os sentidos, espraiados sobre as palmas das mãos como pólen. De flor em flor, devemos ser abelhas e cheirar as flores: “As abelhas e eu / Tontas de perfume” (Sophia de Mello Breyner Andersen). De folha em folha, devemos ser tartarugas e ler devagar: “Contra todas as pressas, a leitura lenta da vida e dos textos, permite que se gere em nós um algo novo, um recomeço que se expanda para além das medidas do espaço e do tempo.” (Miguel Pedro Melo, sj). A leitura lenta da vida e dos textos é uma leitura intuitiva e atenta ao que os movimentos internos e externos provocam no coração.
Determo-nos por instantes ou por largas horas num poema, numa estrofe ou num verso; seguir a cadência das sílabas e deixar que o vento nos sopre como juncos alentejanos crepusculares é ir com as aves de Eugénio de Andrade.
No fundo, a contemplação poética do Humano e do Cosmos é uma contemplação sensível, introspetiva, plena e visceral que nos revela em verdade e liberta a nossa liberdade: “Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara” (José Saramago).

De que é feita a nossa história, senão de poemas?
Por Laura Marques
José Tolentino Mendonça descreve a poesia como “o inútil que perfuma a vida”.
A poesia foi-me escrita na capa do meu diário perfumado, teria eu seis anos. O meu pai escrevia-me como forma de se despedir e fazer-se presente, sempre que voltava a emigrar.
Na minha vida quotidiana as palavras-poesia ficariam para sempre. Palavras poucas, que me faziam tocar o familiar, o sagrado, o íntimo. Depois de as contemplar demoradamente, reler e saborear vezes sem conta, e com os olhos ainda brilhantes de água, corria para fora. A eira dos meus avós era o meu palco. Dali contemplava a horta cheia de vida, a floresta densa ao fundo, o milho debulhado aos meus pés. O cheiro da abóbora acabada de partir ali mesmo, para ser alimento para os animais.
Depois de uma tarde a tratar do jardim
a nossa vida
importa menos
(José Tolentino Mendonça)
Crescer com a poesia escrita do meu pai, num lugar pequeno, simples, de campo, demorou-me o olhar, a ver com atenção. Mary Oliver bem diz que “a atenção é o começo da devoção”.
Queres saber o que rezo nas orações?
Troncos secos, gravetos
Cercas e barro vermelho
(José Tolentino Mendonça)
Já adulta, continuo a precisar de poesia para crescer.
Continuo a dar atenção a palavras poucas que ressoam por dentro, dando cor à paisagem desenhada nas entranhas. A atenção na nespereira que continua a abanar ao vento, mesmo quando por dentro (e por fora) o nosso mundo parece desabar.
Continuo a precisar de me fazer próxima daquela amoreira selvagem à beira rio, ao fim de um dia de trabalho, ou ir caminhar à beira mar.
Cada um lê no poema o poema que traz em si
(André Tecedeiro)
A contemplação devolve-nos o palpitar da Vida, que prossegue, connosco e apesar de tudo.
A contemplação devolve-nos o nosso lugar no Todo: o humano voltar a respirar ao compasso do natural, tecendo presença com impermanência. O tanto que já testemunharam as árvores e continuam de pé.
Tantas vezes
digo ao orvalho
sou como tu
(José Tolentino Mendonça)
Contemplar poesia é uma experiência profundamente pessoal, complexa, pluri-versal, um espelho da Vida em si mesma. A palavra “poeta” vem do grego poiētēs, que significa fazedor, criador. E é esse o convite que deixo, pelas palavras de dois grandes poetas dos nossos tempos: sermos contempladores e fazedores de poesia.
A poesia não são apenas as belas palavras que pomos no papel
Se fizermos algo como um poema da nossa vida
também nós podemos viver como poetas
(Satish Kumar)
Agora só resta
tornares-te
o poema
(José Tolentino Mendonça)
A poesia salva - me.
Por Rita Lança
Esgueirando-se por alguma fresta imperceptível, onde me escapou ter lançado cal, sob o meu corpo, preparando meu próprio enterro, eis que a poesia me brada e me desinstala.
E é tão bonito ver como a vida sopra através de tantos seres. Hoje foi a Laurinha que me enviou a minha “Gana Skin”, numa bela poesia escrita e desenhada pela rupi kaur.
E houve algo de resistência interior que se quebrou, a luz emanada por aquela poesia pôs a nu o que me liga, reconciliando-me com aquilo que não posso ignorar, o mundo destroçado. Aquela poesia fez ecoar dentro de mim a Cantata da Paz do Fanhais e da Sophia, contemplo, “vejo, oiço e leio, não posso ignorar”. A poesia acendeu dentro de mim a minha “condição humana”, o ímpeto para “um novo começo”, como diria Hannah Arendt.
A próxima revolução devia ser poética! Bem podíamos lançar poesia aos molhos, gotejá-la pelas esquinas da indiferença, soletrá-la como quem atira grãos aos pombos, pintar o nosso rosto com ela e sair à rua, anunciando que a poesia governa doravante o mundo.
A poesia é a voz da terra, é a voz dos velhos que não têm idade, é a voz que não se ouve senão com o coração, é a vida que escolheu mostrar - se escrita, desenhada, dançada… que se contempla mas não se consegue agarrar. Está em tudo, pressente-se, mas não é óbvia. Não aparece nua, mas despe-nos, para vermos a essência da realidade. É a subtileza habitada.
É um encontro com o meu mundo trazido pelo olhar contemplativo do outro, que desde o seu mundo me toca a adentrar-me no mundo gerado pela nossa “fusão de horizontes” (Paul Ricoeur).
A poesia entrou na minha vida pela mão de muitos, a quem sou profundamente grata.
O nosso primeiro encontro oficial foi tumultuoso. No 7º ano tive um acesso irado quando contei à minha mãe que num teste de Português tinha saído a poesia “Pequenina” de uma tal de Espanca, “eu é que a espancava”, disse-lhe. A minha mãe, poetisa por natureza, sorriu, pois Florbela Espanca era a sua preferida e falou-me do que era para ela a poesia. Aquela conversa cativou-me, pelo brilho nos olhos da minha mãe, mas eu ainda estava distante, conquanto a poesia tenha povoado toda a minha vida, por conta da minha mãe.
Com os anos, fui percebendo que já contemplava a realidade de uma forma muito telúrica desde muito pequenina. Esse olhar e forma de expressão poéticos estavam muito presentes nos ambientes comunitários onde cresci, até numa certa feição bucólica de mirar a planura alentejana, como mais tarde aprofundei com a bela poesia do meu conterrâneo Bernardim Ribeiro.
O cante alentejano, que tanto gosto de entoar, funde uma habilidade de falar dos assuntos da alma espelhados pela Natureza, de expressar, através das lides da terra, as agruras que gretam os corpos e instigam as vontades. Esta sabedoria poética de se abeirar da natureza como mediadora da quotidianidade é uma lente contemplativa que me ajuda a perspectivar e narrar a minha história.
A poesia como recurso contemplativo
A poesia é porventura um dos recursos mais importantes na minha vida. Revela possibilidades de contemplar o realismo do mundano transcendendo-o, desvela-me meandros do mundo e da beleza que ele transpira. Comunica aquilo que na realidade é efémero e difícil de reter, podem ser emoções profundas, podem ser visões como o orvalho nas plantas, aquilo que nos perpassa e que simultaneamente aporta beleza, leveza, crueza, desinstalação.
Adentrar-me na realidade que se me avizinha dura, no fugaz como a morte, expressando-o, nomeando-o, tornando-o mais palpável, entrando em alteridade com esse outro que me atormenta, olhando-o nos olhos. A potencialidade sinestésica de tocar o mistério, de manifestar subtileza, erotismo, num mundo em que estamos continuamente a ser injetados com o despido, onde o simbólico e a imaginação são banidos das vidas.
Dos encontros poéticos através dos quais contemplo a minha história, recordo um bilhete inolvidável do Nelson, com quem namorei: “deixa-me semear campos de papoilas nos teus sonhos”.
E o encontro com a Maria Eduarda, conhecemo-nos numa exposição celebrativa da vida do Eugénio de Andrade, onde me contou a sua bela história de amor, através das cartas que recebeu do namorado músico: “o jazz poético com versos do Eugénio”, cuja relíquia generosamente me partilhou.
Para quem ama poesia é difícil a escolha, mas deixo-vos com o Carlos de Oliveira:
A noite é a nossa dádiva de sol
aos que vivem do outro lado da Terra.
Contemplar a vida através da poesia é um processo profundamente pessoal, que desvela a nossa condição e natureza profundas. É um espelho da nossa vida, das paisagens que nos permeiam.
É uma prática, nossa companheira e testemunha, no caminho que vamos percorrendo.
Para nós, tornou-se uma necessidade e um recurso, um convite a materializar na nossa vida e na sociedade. Como escreveu Pablo Neruda:
(…) trago em mim
não a minha pequena vida,
mas todas as vidas,
e caminho seguro em frente
porque tenho mil olhos,
porque tenho mil mãos
e a minha voz ouve-se nas margens
de todas as terras
porque é a voz de todos
os que não tiveram fala,
dos que não cantaram
e hoje cantam nesta boca.