Nas minhas entranhas já há muito se moviam a intuição e a curiosidade de cozer dois
universos – o comer e o viver e como se imbricam e confluem no processo de fim de vida.
As pedras de toque para escrever o artigo, do qual teço este post, e que apuraram este apetite
que há muito me rilhava por dentro 😊 foram a aproximação do período natalício e conversas
com o Ricardo, o ousado arquiteto de cemitérios, que me apresentou a investigação da
Mariana Sanchez Salvador, arquiteta portuguesa que estuda as interseções entre a comida e a
arquitetura.
A nossa natureza cultural
Carolyn Steel, na sua obra Hungry City: How Food Shapes our Lives de 2008, considerou que o
ato partilhado de comer é o fenómeno social mais complexo da humanidade por ser o
contexto onde nos definimos como seres sociais e no qual reconhecemos o nosso vínculo
profundo com o mundo natural que habitamos.
Observando os processos sociais e culturais que permeiam a forma como vivemos o fim de
vida, tendo a reconhecer o lugar central que a relação com a comida, as pessoas, os lugares, as
próprias paisagens alimentares ocupam nesse tempo. Noto também, por outro lado, o
manifesto enfraquecimento do vínculo, da nossa relação com a natureza e as suas ciclicidades.
A figura do nosso próprio corpo é porventura a melhor metáfora desta aceção.
O corpo que cuidamos através da comida que preparamos, o corpo que exibe preferências
alimentares muito particulares, o corpo que guarda memórias afetivas dos comeres/lugares da
nossa vida e que manifesta uma identidade muito distintiva no seio da comunidade que o
nutre. Lembro que na casa do meu avô Joaquim, as patas de galinha eram sempre para o meu
padrinho e para mim - somos conhecidos e cuidados de acordo com o modo como comemos.
Se, por um prisma, é evidente a nossa dependência do ecossistema natural para nos
alimentarmos, seja pelo consumo direto de produtos crus ou pela transformação, por outro,
temos vindo a perder sabedoria prática relativamente ao processo de transformação
constante do nosso corpo, transformação que atesta a nossa interdependência com a
natureza. Nós também somos natureza, natureza moldada pela cultura. A audácia científica
que nos tem permitido prolongar o nosso tempo de vida ainda não nos permite contornar a
dependência intrínseca que o nosso corpo tem das ciclicidades naturais, nomeadamente o
processo de declínio que conduzirá à morte.
Pensando o período de fim de vida, associado a processos de envelhecimento ou doença
crónica ou prolongada, é frequente observar o quanto a dimensão cultural tende a colonizar a
dimensão natural, exemplificada na prática comum de se continuar a alimentar com as
mesmas quantidades e frequência um corpo que está em processo ativo de desaceleração e
redução gradual das suas funções.
Importa, pois, olhar os processos pelos quais nos vamos socializando no cuidado, as
configurações e o sentido que imprimimos às práticas de cozinhar e comer, e como estas se
refletem no fim de vida.
Refúgios que nos cuidam
Parafraseando o meu amigo Hugo Dunkel, nós somos possivelmente os únicos seres que
necessitamos buscar, criar um abrigo, que nos assegure refúgio.
Depois do útero materno, a comida, o afeto/vinculação/relações/comunidade e a
casa/paisagem convertem-se em grandes refúgios, tais placentas que nos nutrem.
“Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é o nosso primeiro cosmos” (Gaston Bachelard,
1998, A Poética do Espaço). A casa transfigura-se num espaço de refúgio, abrigo, espaço da
socialização íntima, onde se tece com finas linhas a nossa identidade individual e se projeta a
identidade social, testemunha de valores e de modos de vida. Neste sentido, a(s) casa(s), as
paisagens que formam o seu entorno e a comunidade são importantes focos de segurança e
fontes férteis para a gestação do nosso imaginário, das nossas paisagens interiores, do
ser/memória que encarnamos.
Como refere Mariana Salvador, é significativo que no centro da casa esteja o fogo,
materializado na cozinha, o fogo que alimenta o corpo e a alma, o fogo que aquece e permite
cozinhar. O abrigo e a alimentação configuram necessidades biológicas universais, sendo que
ambos transportam também a dimensão de nutrição afetiva.
No palco social, cozinhar e comer são centrais na sociologia do cuidado. A comida é feita por
alguém, para alguém, é assim um espaço de referências alimentares e um espaço de
socialização primária. Na realidade portuguesa, a confeção da comida está grandemente
associada à figura do cuidado feminino, a mulher, a mãe, a avó.
A comida desempenha um papel fulcral na construção da identidade e da memória. O olfato é
a memória mais proeminente em nós e é permeada por cheiros das comidas que nos habitam,
que foram casa e continuam a significar para nós refúgio afetivo. Estas memórias estão
associadas a lugares específicos, que habitámos, a práticas, tradições, simbolismos. Uma
comida é a evocação de um território, de um solo, de um clima, de produtos e sabores
peculiares, dos quais nos apropriamos afetivamente. O próprio sistema produtivo é modelado
pelas práticas culinárias que influem indelevelmente na arquitetura paisagística dos lugares.
Tal como afirmou Santi Santamaría, na obra La Cocina al desnudo de 2008, “a minha terra é a
minha cozinha”.
Viver a comer
Dos atos que assinalam o compasso da vida, na cotidianidade partilhada, o comer é sem
dúvida basilar e continuado. Reveste-se de várias dimensões, enquanto ato nutritivo, fonte de
prazer, ato de sociabilidade e comunicação, redil de recordações, afetos, significações.
Associado a espaços e rituais que variam de acordo com os tempos históricos, as culturas que
os enformam, as classes sociais, entre outros, comer configura um processo performativo.
Pensando no paradigma português, a jornada alimentar (o número de refeições, a sua
composição, os horários das refeições, entre outros) varia consoante as circunstâncias
individuais e comunitárias, mas genericamente enquadra um modelo que inclui várias
refeições ao longo do dia (tradicionalmente o pequeno almoço, almoço, lanche, jantar, ceia),
sendo que o almoço e o jantar tendem a ser refeições mais fartas. Tomando como exemplo
comparativo, na cultura italiana, o lanche, conhecido como “merenda”, é menos usual, sendo
comum o “aperitivo”, uma bebida acompanhada de um petisco salgado, tomados antes do
jantar.
Atávico à herança do Sul da Europa, Portugal é um dos países que continua a resistir ao
processo de padronização taylorista da alimentação, preservando tradições culinárias
profundamente identitárias.
Na cultura portuguesa, acolher e cuidar à volta do fogo das panelas é uma prática ordinária,
como meio de prover ao sustento do corpo e da alma. Estejamos com fome, adoentados ou
tristes, é comida que oferecemos. Uma canja para enrijar depois de um resfriado, ou uma sopa
de cozido para engordar as carnes que o sofrimento esburgou.
Esta relação simbiótica entre o viver e o comer, a cozinha como centro do nosso mundo
familiar, a partir do qual nos revestimos para o mundo – “Umwelt” e o “Welt” descritos por
Paul Ricoeur, o meu mundo e o mundo/meio ambiente- está exemplarmente delineada nos
romances de Ferreira de Castro. Guardo na memória a película viva em A Lã e a Neve, onde
numa divisão exígua, todas as dimensões da vida doméstica se processavam e onde o fogo
cozinhava os sonhos que alimentavam a vida.
Um grande bem-haja ao Centro de Estudos Ferreira de Castro, em especial ao Carlos Oliveira
Castro e à Cristiana Oliveira, pela cedência da foto da cozinha da Casa-Museu Ferreira de Castro
em Ossela, para ilustrar o ethos que permeia a nossa cultura.
No artigo seguinte darei continuidade a este tema, prosseguindo esta viagem culinária – Comer de Morrer 😊 Espero que sigam com apetite!