Este artigo dá continuidade ao anterior, por onde sugiro iniciarem a leitura.
Deambulações entre o corpo e a cozinha
No Alentejo, onde cresci, a arquitetura das casas colectivizava o espaço onde simultaneamente
se cozinhava e se comia, numa mescla alheia aos valores de privacidade e individualidade. Em
Sakaivo, um lugar remoto numa montanha no Madagáscar, fui recebida pelo chefe da aldeia
na sua cozinha, o centro da casa, com janelas abertas para o mundo, soslaiadas aqui e acolá
pela estridência curiosa das crianças. Aqui, como lá, sinto que a morte está mais próxima.
Esta imiscuidade comporta, na minha análise, um outro simbolismo interessante – a
irmandade com os cheiros e produtos da preparação e a sujidade associada ao fumo que
enegrece a cozinha. Ambos os exemplos contrastam com os ambientes asséticos em que
amiúde passámos a habitar e que se manifestam também no modo como tendemos a olhar os
períodos de maior fragilidade, que incluam um corpo débil, ””odolorento””, e que deixámos de
percecionar como natural.
Assim como as cozinhas vivas da serra do Montemuro, vestidas de negro, igualmente o nosso
corpo é um ecossistema, que pede ser olhado e cuidado de acordo com os seus ciclos e
acompanhá-lo neste compasso é uma forma de respeito, profundo, tal como os homens no
Alentejo ainda tiram a boina num cortejo fúnebre, como sinal de reverência.
Estas dimensões sensoriais, olfativas, tácteis, foram intimamente condicionadas pela
reorganização dos processos produtivos. Para favorecer a industrialização, foram-se adulterando e simplificando processos complexos de transformação, como é o caso da fermentação, que tem vindo a ser substituída por processos como seja a pasteurização. Recordo o modo artesanal como o vizinho Zé Gordo e a Fecidade faziam os queijos em casa e observo taciturna mas resistente a estas mudanças.
Dominámos o fogo, poderemos impedir a morte do corpo?
A figura mitológica grega de Prometeu, o titã que ousou roubar o fogo aos deuses para o dar
aos mortais, transporta, na minha ótica, dimensões interessantes para refletirmos as nossas
práticas de cuidado alimentar em fim de vida. Metaforicamente a narrativa épica a ele
veiculada coloca no centro o fogo/a vida, sedimenta-se na escolha de enfrentar com coragem
os medos/as suas circunstâncias e a sua ação é informada/preparada. Curiosamente, é filho de
Jápeto, o deus-titã associado ao tempo de vida e à mortalidade.
“Para além da Taprobana” dos progressos técnicos, para dominar o fogo o homem teve que
ultrapassar o medo que o fogo lhe gerava, como gera a outras espécies, que dele tendem a
proteger-se. Inversamente, o medo da morte, ofusca e retarda a aceitação da impossibilidade
de dominar a transformação do corpo humano, que converge irreversivelmente para a perda
de funções protetoras, para o declínio, a cessação da vida e um processo de decomposição. É
uma fatualidade que a humanidade não tem solução para a morte.
Comer de Morrer
Quantas das nossas opções culinárias no cuidado em fim de vida são escolhas informadas?
Para ilustrar este artigo elegi o pictórico em Arcimboldo, pintor italiano do século XVI. Na sua
obra interpenetram-se elementos culturais e naturais e uso L’ Ortolano como uma alegoria,
para metaforizar o exagero alimentar tendencialmente praticado em fim de vida, por
desconhecimento dos sinais, sintomas e necessidades dessa fase.
Na base da nossa filosofia do cuidar, a dádiva por meio da comida significa, para além da
dimensão nutricional inerente à alimentação, o dar-se na relação. Quando te preparo uma
sopa estou a oferecer-te aquilo que sou, através desse gesto de cuidado.
Neste sentido, como poderemos equilibrar a nossa necessidade de cuidar, os valores culturais
que veiculamos e as necessidades específicas em fim de vida?
Partir de um entendimento do processo de morte, permite adequar os cuidados às
necessidades, fisiologia e metabolismo atual, contribuindo para reduzir a ansiedade que assola
os cuidadores e direcionar escolhas informadas, que favoreçam um maior conforto e
qualidade de vida.
Tal como descrito no artigo Expresso (para ler todo o conteúdo deste artigo é necessário ser
assinante Expresso), e como detalhei no podcast, em final de vida o foco do cuidado deve
centrar-se em acompanhar o corpo naquele que é o processo natural da morte e que
manifesta uma sabedoria inerente.
Nesta fase, assiste-se a uma diminuição das necessidades nutricionais e de hidratação. O
metabolismo vai desacelerar, os órgãos reduzem gradualmente as suas funções, terão cada
vez mais dificuldade em processar a comida e água ingeridas que se podem acumular, sob
diversas formas, gerando toxicidade. Decorrente da diminuição do nível de metabolização, é
comum os líquidos se acumularem sob a forma de edema. Com a falência renal e o risco de os
líquidos irem para os pulmões, resulta claro que é mais confortável morrer levemente
desidratado, é fisiológico.
Neste sentido, são de extrema relevância os cuidados à boca, que tendem a aliviar a sensação
de boca seca, mais do que aumentar a ingestão de água. Estes cuidados passam por pequenas
medidas como humedecer amiúde os lábios e manter uma boa hidratação dos mesmos, prover
a uma boa higienização da boca, procurando um ambiente mais alcalino, que minimize a
proliferação de microrganismos.
Em final de vida, verificam-se várias alterações ao nível do paladar, dificuldades de
deglutição/disfagia, requerendo por vezes a escolha de alimentos mais pastosos ou a adição de
espessante aos líquidos.
Um dos primados importantes a nível alimentar é que menos é mais, sendo preferível
alimentar-se de pequenas quantidades de alimentos, adaptando a consistência dos mesmos,
reeducando o paladar e experimentando criativamente novos aromas, temperos.
Nesta linha, a premissa de que alimentar, sobretudo em quantidade, é sinal de vida pode ser
catalisadora de desconforto porque se demonstra desadequada ao que o corpo necessita
efetivamente, demonstrando este maior dificuldade em processar.
Desbloquear a nossa imaginação de cuidado alimentar
De acordo com a Filosofia de Cuidados Paliativos, “quando não podemos acrescentar dias à
vida, podemos acrescentar vida aos dias.” (Cicely Saundres, fundadora do Movimento Hospice).
O nosso foco está na qualidade de vida da pessoa, ajustando às necessidades da pessoa, àquela
fase, e isto não configura desinvestimento. Toda e qualquer opção é tomada em função do
controlo de sintomas e dos benefícios ao nível do conforto. Significa que não há um protocolo
prévio, as medidas devem ser adaptadas a cada pessoa, em cada fase particular.
Na sociedade portuguesa, uma das formas de expressarmos cuidado, dádiva, amor é através
da comida. Tantas vezes oiço as famílias expressarem o medo de que se a pessoa não comer
morrerá mais rápido. A pessoa está a morrer devido à evolução do seu quadro clínico, não
porque deixou de comer.
É importante reaprendermos a escutar o corpo e a cuidarmos mais outras dimensões ligadas à
comida, como sejam os rituais. Comer é altamente performativo e pode continuar a ser, assim
nos deixemos guiar pela criatividade de flexibilizar os horários das refeições, a sua composição,
os ritmos e modos em que decorrem. Porque o ingrediente fundamental que não pode faltar é
a nossa presença, amorosa, atenta, serena.
É relevante estimular a experiência sensorial, é essa que nos faz viajar nas nossas paisagens
interiores mas também nos permite alargá-las. A cinematografia representa exemplarmente o
imbricamento entre a comida, a memória e a alegria de viver. Recordo os filmes grego Politiki
Kouzina de Tassos Boulmetis, o americano Ratatouille de Brad Bird ou o indiano The
Hundred-Foot Journey de Lasse Hallström.
A biografia do nosso corpo e da nossa alma é profundamente alimentar. E a comida é uma das
chaves que nos permite aceder ao vasto manancial das nossas paisagens interiores, lugares de
conexão com a história vivida, recordadas/avivadas pelo coração no presente. Como afirmou
Viktor Frankl, “ter sido é uma forma de ser e das mais efetivas”.
Por outro lado, ainda Viktor Frankl, remete para a plasticidade do ser humano na busca pelo
sentido da vida, observando que é possível manter o sentido da vida em todas as formas de
existência, continuando a explorar novas possibilidades e configurações.
Lembro com carinho uma conversa que tive com meu primo André, à época um jovem médico
em formação e com tanta sabedoria ancestral. Eu acompanhava o meu pai em fim de vida e
debatia-me com imensas tensões, entre as indicações médicas, nutricionais e a comida como
fonte de prazer, uma das maiores para o meu pai. E o André serenou-me o coração,
devolvendo-me o que era realmente importante naquela fase – adequar as quantidades ao
metabolismo atual e avivar os sabores que nos fazem viver através deles, esses que nos
deixam com um “brilhozinho nos olhos”, como canta o poeta Sérgio Godinho.
Dieta, de Afonso Cruz
Não, João
disse a mãe dos meus vizinhos,
não podemos ter um pirilampo.
Eu nem sei o que é que eles comem…
se dão luz,
só podem comer lâmpadas,
disse o Manel.
O alumiar destas palavras é dedicado ao Feciano (como todos lhe chamamos)… um bom
amigo, dos melhores que o meu pai teve e que partilhámos no curso da vida. Chegou o tempo
da sua transição…Recordo os comeres da matança, os torresmos, o milagre das maçanitas que
me regalava e esse abraço de barriga que é mundo, palmeado e saboreado.
(16 de Novembro de 2023)
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