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Foto do escritorRita Lança

De férias contemplando a morte?

Inspirada na visita à Catedral de St John's em Valletta, Malta, escrevo sobre uma temática que há muito borbulha em mim - a contemplação da morte.


A cultura latina cunhou-a com a expressão Memento Mori, significando "lembra-te que também tu vás morrer". Marco Aurélio, imperador romano, exemplificou numa meditação esta prática: Imagine que morreu hoje, olhe o seu corpo morto. De seguida, considere a sua vida a partir de agora, o que quer fazer com o tempo que lhe resta?


Historicamente, a contemplação da morte tem assumido diversas configurações, manifestando influências culturais, religiosas e sociais, tendo como denominador comum ser um conjunto de práticas que procuram despertar no quotidiano a consciência da transitoriedade da vida e da sua finitude. Por exemplo, os Sufis, uma corrente islâmica, contempla a morte cantando; os Monges de Cister retiravam diariamente uma pá de areia daquela que um dia seria a sua cova.


Mas porquê é que é importante contemplar a morte?


Para recentrarmos aquilo que é realmente importante e prioritário na nossa vida. Muitos sábios dizem que é o elixir da vida, aquilo que lhe dá consistência e sabor.


Contemplar a morte não exige um qualquer contexto particular, aliás, é tanto mais profícua quanto estiver imiscuída na vida quotidiana.

A questão que me desconcerta amiúde é porquê é que as sociedades contemporâneas estão tão distantes desta prática? (tema ao qual voltarei futuramente, se não morrer entretanto :)


No que me toca, tal como partilhei no Podcast (disponível no final deste artigo), contemplar a morte é uma prática diária na minha vida, atestada por estar de férias a escrever-vos este artigo.


Contemplando a morte na Catedral de St John


Regressando à bela Catedral barroca maltesa … pisei o átrio onde se inicia a visita, vislumbrando abaixo dos meus pés, impressa numa lápide tumular, a magnífica imagem de um esqueleto representando a morte.

A seguir a este sucederam-se dezenas de túmulos de cavaleiros da Ordem de Malta, que cobrem por completo o chão da Catedral.

Contemplando a Morte - chão da Catedral de St John's em Valletta
Catedral de St John's em Valletta

Estes túmulos falaram-me da nossa ligação com a natureza e as ciclicidades, da nossa relação com o tempo da vida que discorre. Expressaram-me o desejo destes cavaleiros serem lembrados para lá da morte e a importância de se representarem manifestando, entre outras, a forte ligação com os animais que os acompanharam em vida.


Nestes túmulos vi outras facetas da morte, como um ente amoroso a vir buscar - nos, a morte com asas de anjo. Nesta sucessão de intermitências da morte, toquei o sangue pulsante da vida de Caravaggio.


O pintor pisou o oratório da Catedral como cavaleiro e nesse espaço viria a habitar aquela que é considerada a sua obra - prima, a "Decapitação de S. João Batista". Trata-se da única pintura conhecida por si assinada, sendo significativo que tenha colocado a assinatura no sangue que jorra da garganta do santo.


Esta obra é altamente simbólica porque recorda a natureza efémera dos eventos da vida e a sua impermanência. No lugar onde está exposta a sua obra maior, foi expulso da Ordem de Malta, em frente ao quadro por si legado ao mundo. É também marca que permanece para além da fugacidade da morte, luz que transparece do escuro da morte, história que foi contada, que nos suga no realismo que caracteriza a sua pintura e que tão exemplarmente manifesta a história humana e a sua natureza finita.


Ainda com Caravaggio, outra obra do pintor "São Jerónimo Escrevendo" - transporta pistas para contemplar a vida e a morte - no livro que escrevia (que para mim representa a escolha de como queremos viver), na caveira (representação da morte convocada para a vida quotidiana, no labor dos dias) e na pedra e no crucifixo (as âncoras que escolhemos na vida).


Seguindo a pista de Pema Chodron:

Já que a morte é certa, mas a hora da morte é incerta, qual é a coisa mais importante?


Boas contemplações :)



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