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  • Foto do escritorRita Lança

Tendências no cuidado em fim de vida em Portugal: Atores e Paisagens

A propósito do artigo da Jornalista Helena Bento, Cuidar de quem está no fim da vida (para ler todo o conteúdo deste artigo é necessário ser assinante Expresso), lançado pelo Expresso a 25 de Agosto de 2023, quero agradecer publicamente ao Jornal Expresso e a toda a equipa que deu voz e rosto a esta realidade, visibilizando o papel das doulas e o caminho da comunidade de doulas de fim de vida em Portugal.


Com este post, procuro incorporar temas que surgiram em comentários nas redes sociais do Expresso, focando as dimensões que mais tocaram as pessoas, as que geram desconforto, as que requerem mais informação e aprofundamento.


Famílias, comunidades e serviços na paisagem de fim de vida


Como clarifiquei no podcast Vozes da Transição (disponível no final deste artigo), de acordo com os resultados da investigação que tenho desenvolvido, as grandes transformações do sistema produtivo alteraram a paisagem e atores no campo do cuidado no fim de vida:


As famílias: Mudanças no tempo disponível para cuidar


O trabalho e o consumo tornaram-se centrais nas sociedades contemporâneas e confluíram para mudanças nos modelos familiares e produtivos, atestadas pela tendência, desde o século XX nas sociedades ocidentais, de diminuição do tempo disponível das famílias para cuidar.


Por um lado, o cuidado a familiares e comunidade de proximidade era grandemente assegurado por mulheres, sendo que a taxa de ocupação laboral destas tem vindo a aumentar, criando desafios na conciliação da vida familiar e profissional.


A nossa escala de prioridades a nível do uso do tempo livre é menos direcionada para visitas e acompanhamento a pessoas em situação de fragilidade e mais direcionada, entre outras, para atividades de lazer e entretenimento porque tendemos a atribuir mais importância ao desenvolvimento e realização pessoais.


Por outro lado, esse acompanhamento tem vindo a ser transferido para a esfera institucional, nomeadamente para serviços de saúde, instituições sociais, agências funerárias, entre outros.


A pintura que ilustra este Post, La Dame de Charité de Jean-Baptiste Greuze, retrata na França do século XVIII, a visitação a um homem doente. No meu óculo, a singularidade que o torna invulgar para a contemporaneidade é que esta mulher se faz acompanhar pela sua filha, uma criança a quem introduz a importância de acompanhar na fragilidade e proximidade.


Pintura: La Dame de Charité de Jean-Baptiste Greuze
La Dame de Charité de Jean-Baptiste Greuze

As comunidades: Do interconhecimento aos movimentos formais


Se pensarmos na própria configuração das comunidades em Portugal, vivemos presentemente com menos proximidade, interconhecimento e entreajuda, pese embora, em contracorrente a estas tendências, se assista a um maior incremento de atividades de voluntariado formal, integrado em instituições, e a movimentos que procuram reavivar o sentido de envolvimento comunitário.


Destaco o exemplo do movimento internacional – as Comunidades Compassivas - em Portugal conhecido como Portugal Compassivo.


Este movimento, no qual me integro, procura corporificar o ressurgimento de redes de cuidado comunitárias, assumindo que o compromisso de cuidar em momentos de fragilidade é responsabilidade de toda a sociedade e não exclusivamente de serviços públicos.


Os serviços: Acessibilidade e equidade no fim de vida


Olhando para a realidade portuguesa a nível de necessidades e acompanhamento em fim de vida, de acordo com o Relatório do Observatório Português dos Cuidados Paliativos, lançado em 2020 e relativo à Atividade Assistencial das Equipas/Serviços de Cuidados Paliativos, “a cobertura universal efetiva de cuidados paliativos no nosso país está longe de estar alcançada assim como revela profundas assimetrias a nível distrital/regional e de tipologias.”


Em matéria de equidade no acesso a cuidados paliativos, os serviços públicos portugueses estão aquém dos “requisitos mínimos preconizados internacionalmente”. Citando o referido Relatório, “cerca de 102 mil doentes adultos e cerca de 8 mil em idade pediátrica, necessitaram de cuidados paliativos no ano de 2018”, sendo que somente acederam a esse serviço “25570 doentes adultos e 90 em idade pediátrica, o que denota uma taxa de acessibilidade de cerca de 25% dos adultos e 0.01% nos em idade pediátrica”.


A estes números acresce a “grande sobrecarga assistencial por parte de profissionais de equipas de cuidados paliativos”, e um “nível do tempo de trabalho semanal dedicado a cada doente (…) muito baixo”, o que põe em causa “a verdadeira integralidade dos cuidados e atenção às necessidades globais, e em tempo útil, dos doentes que a eles são referenciados”, na medida em que “os recursos humanos existentes são manifestamente insuficientes para um cuidado integral”.


Se considerarmos que estes fatores são barreiras reais a “uma verdadeira cobertura universal de saúde”, se nos ativermos a “áreas profissionais fora do campo da medicina e enfermagem, quase que se revelam incipientes no tempo dedicado aos doentes, deixando no ar, a interrogação de se de facto estamos perante cuidados integrais ao doente com necessidades paliativas”. A Intervenção familiar e os cuidados espirituais são duas dimensões com pouquíssima cobertura por parte dos serviços.


Se nos debruçarmos sobre situações de pessoas em fim de vida que não foram referenciadas e/ou acompanhadas por uma qualquer Equipa/Serviço de Cuidados Paliativos o quadro é menos visível, mas igualmente inquietante.


Muitas pessoas em fim de vida recorrem a centros de saúde e/ou a serviços de urgência hospitalar, que nem sempre estão capacitados para intervir nestes quadros. Embora possa haver cada vez mais profissionais de saúde habilitados a prestar ações paliativas, quem intervém neste sector de fim de vida, sabe que a factualidade ainda está muito aquém das necessidades reais.


A maior parte das famílias que procuram os meus serviços em últimas semanas/dias de vida, amiúde já recorreram anteriormente a serviços de urgência com sintomas descontrolados, como por exemplo dor ou dispneia, tendo regressado ao domicílio com o mesmo tipo de queixas.


Este é um dos indicadores mais presentes no acompanhamento que desenvolvo, porque as famílias tendem a desconhecer os sinais e sintomas de fim de vida, bem como o circuito de funcionamento dos serviços e necessitam de informação, mediação e/ou encaminhamento para as Equipas/Serviços de Cuidados Paliativos.


Não quero com esta afirmação desvalorizar o trabalho dos profissionais de saúde, nomeadamente em contexto de urgência hospitalar. Gostava aqui de manifestar o respeito e admiração que tenho pelos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de saúde), também eles altamente afetados pela já mencionada sobrecarga assistencial.


Pretendo antes clarificar que há nichos de intervenção no acompanhamento em fim de vida que não têm tido resposta nem por parte das redes de proximidade (familiares, comunitárias), nem por parte dos serviços sociais e de saúde e que cada um de nós, no seu papel específico é imprescindível.

Tal como é impreterível que possamos aumentar o nosso conhecimento acerca destas matérias, para melhor acompanhar pessoas e famílias em processo de fim de vida.


Partilho uma história lindíssima, vivida por uma enfermeira, colega de formação em cuidados paliativos. A Patrícia, no seu expediente no serviço de urgência, com um número de solicitações superior à sua capacidade de resposta e presença, apercebeu-se que duas pessoas, deitadas em macas, em zonas opostas na sala, se olhavam mutuamente.


Na impossibilidade de as acompanhar de outro modo, teve a extrema sensibilidade de aproximar as duas macas. Estas duas pessoas morreram de mãos dadas, com um minuto de diferença uma da outra.


Esta história testemunha o olhar e a beleza da filosofia de Cuidados Paliativos que já estava presente na Patrícia, mas revela também a realidade gritante dos serviços e a forma como tão frequentemente se morre em Portugal.


Precisam-se novas respostas em fim de vida


A investigadora Bárbara Gomes, especialista em cuidados paliativos da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, tem-se dedicado a estudar a relação entre os cuidados prestados no final da vida e as expectativas, necessidades, preferências e prioridades das pessoas.


Numa entrevista referiu que há “duas características chave que definem a forma como a sociedade portuguesa lida com doenças avançadas e o fim de vida. Por um lado há uma tradição de apoio familiar alargado – tentamos cuidar dos nossos em casa, uma missão que é muito associada às mulheres na família. Por outro lado, somos extremamente dependentes dos hospitais – achamos que lá vamos encontrar os melhores cuidados de saúde”.


Observa que Portugal apresenta “uma das mais altas taxas de morte hospitalar do mundo” e fala da insustentabilidade deste “sistema hospitalocêntrico”. Aponta que “precisamos perceber que os cuidados devem girar em torno dos doentes e das famílias, e não o contrário.


Precisamos de uma revolução Copernicana na forma como apoiamos pessoas com doenças avançadas e as suas famílias. Temos que repensar e criar novas soluções.” E é nesta esteira, tal como noticiou a jornalista Helena Bento, que “as doulas vieram ocupar um “vazio” deixado por famílias e serviços públicos”.


No post seguinte abordarei a especificidade do papel das doulas, sendo que uma dessas dimensões é a sensibilização e educação para encarar a nossa vida desde as suas ciclicidades e constantes transformações e a morte como um processo natural, ligado à natureza do nosso corpo.


Que possamos colher inspiração no poeta japonês Ikkyū: Como o orvalho que desaparece, assim se deve considerar a si mesmo.


Ouvir Podcast Vozes da Transição:





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