top of page
  • Foto do escritorRita Lança

O papel das doulas na paisagem de fim de vida em Portugal

A figura da doula na comunidade


O espaço de atuação que as doulas ocupam está presente nas comunidades ao longo da história. O cuidado e acompanhamento nas grandes transições ao longo da vida, entre as quais o fim de vida, não é um fenómeno novo.


A inovação social deste papel – ser doula profissionalmente - reside sobretudo na resposta a necessidades sociais não satisfeitas, mobilizando práticas já existentes sob novas configurações, que melhor respondem aos desafios dos contextos atuais.


A palavra doula tem assumido diversas configurações históricas, cujo sentido expressa uma figura que cuida, na esfera da intimidade e do afeto, contribuindo para criar uma atmosfera confortável e segura em momentos da vida em que nos sentimos vulneráveis.


Etimologicamente, o termo “doula” deriva do grego e significa uma pessoa que “serve”, cuida. Este termo foi transposto para o universo profissional em 1973, pela antropóloga Dana Raphael, para se referir às doulas do nascimento, figuras que prestavam apoio emocional, prático e/ou informativo desde a preconcepção ao pós-parto.

Em 2015, Henry Fersko-Weiss, um assistente social americano, cria a International End-of-Life Doula Association (INELDA), com a missão de formar doulas de fim de vida.


A presença da doula na realidade portuguesa


Observando a realidade portuguesa, no contexto onde cresci, era manifesta a presença destas figuras, amiúde mulheres, uma presença profusamente cosida na tessitura comunitária e quase imperceptível mas muito efetiva.


Da minha família faziam parte duas dessas mulheres: a Prima Agostinha e a Prima Teresa.


Ambas inspiraram-me indelevelmente, com elas privei desde criança, escutando histórias vividas, discutindo visões acerca da vida e da morte, acompanhando no seu modus operandi.


Ambas foram doulas do fim de vida, como dizia o povo, “tinham natureza” para cuidar em circunstâncias de grande fragilidade e, entre outras, eram frequentemente chamadas para acompanhar no processo de fim de vida e após a morte, para ajudar a preparar o corpo, juntamente com a família.


No final deste artigo presto-lhes homenagem, partilhando a carta de despedida que escrevi em Maio deste ano, aquando da morte/celebração fúnebre da vida da Agostinha.


Estas figuras comunitárias não se reconheciam nem eram reconhecidas como doulas, este é um termo resgatado recentemente, para ressignificar um papel imemorial que tem vindo a desaparecer na maior parte das sociedades ocidentais.


Paralelamente à morte desta geração que ainda detinha este conhecimento e proximidade comunitária, integrado em movimentos internacionais (por exemplo ligados aos Hospice - hospitais especializados na prestação de Cuidados Paliativos, presentes no mundo anglo-saxónico- e Comunidades Compassivas) têm-se vindo a desenvolver novas respostas que possam dignificar e colmatar as lacunas existentes no acompanhamento em fim de vida.


No espaço transcorrido nas últimas quatro a cinco décadas este universo comunitário, marcado pela proximidade e entreajuda, foi paulatinamente dando lugar a um recurso regular a serviços mediadores no processo de fim de vida e morte.


Como clarificaram os estudos - Preferências e Locais de Morte em regiões de Portugal em 2010, conduzido pela investigadora Bárbara Gomes, bem como a investigação desenvolvida por José Nuno Ferreira da Silva, publicada em livro em 2012, A Morte e o Morrer - os portugueses passaram maioritariamente a morrer nos hospitais ou instituições sociais em detrimento de morrer em casa.


Os cuidados pós - morte ao corpo foram quase exclusivamente transferidos para agências funerárias, como bem atesta o estudo Viver da Morte de Rita Canas Mendes, acerca da indústria funerária em Portugal.


Neste contexto em que se constata uma melhoria substancial nos cuidados de saúde e sociais no fim de vida, concomitantemente assiste-se a uma reconfiguração familiar e comunitária na paisagem de fim de vida, a um decréscimo do conhecimento que as pessoas e as famílias têm acerca do processo de morrer, bem como do envolvimento comunitário nestas fases da vida. Diria que a morte se tornou mais previsível e menos visível.


A comunidade de doulas de fim de vida em Portugal


A comunidade de doulas de fim de vida em Portugal integra-se nesse movimento internacional mais amplo que procura corporificar novas respostas no âmbito do fim de vida e tem-se vindo a afirmar, quer pelo espaço formativo que oferece, pelo ativismo que procura dinamizar, quer pela oferta concreta de apoio, voluntário e/ou profissional.


Graças ao estímulo pioneiro da Ana Catarina Infante (à época doula do nascimento e enfermeira de Cuidados Paliativos) e da Amara, Associação pela Dignidade na Vida e na Morte, foi desenvolvido em 2019 o primeiro curso de doulas de fim de vida em Portugal.


No ideário da nossa comunidade está patente a visão de contribuirmos para alargar o entendimento acerca da morte - como um processo natural e integrante dos ciclos da vida, fonte de transformação.


Os processos de envelhecimento, doença, luto, sofrimento são encarados desde a presença, a capacidade de escuta e acompanhamento numa perspectiva que integre as várias dimensões da pessoa e da família.


A que tipo de necessidades respondem as doulas de fim de vida?


Importa pois começar por esclarecer alguns equívocos comuns.


A doula de fim de vida não presta cuidados de saúde, pode, sempre que possível e desejavelmente, atuar em estreita colaboração com as equipas que acompanham a pessoa/família mas, isoladamente, não presta Cuidados Paliativos. Os Cuidados Paliativos são, na sua génese, prestados em equipa.


O que distingue o tipo de acompanhamento da doula é a relação profunda, no campo da intimidade, e nas várias esferas de vida da pessoa, que podem envolver acompanhamento no domicílio, num hospital, numa deslocação a um serviço, num funeral, entre outros.


Tipo de acompanhamento da doula

  • Respondemos a necessidades emocionais, espirituais, físicas, informativas, necessidades de foro prático, entre outras.

  • Acompanhamos a pessoa em fim de vida, a família, as pessoas significativas, sempre de acordo com os desejos do próprio.

  • Acompanhamos pessoas em qualquer ciclo de vida que queiram preparar-se para estes processos e integrá-los na sua vida de uma forma mais consciente, independentemente de estarem ou não a viver processos de doença ou algum tipo de fragilidade. Um dos nossos lemas é ajudar a viver melhor e a integrar as diferentes perdas/lutos ao longo da vida.

  • Apoiamos na feitura do testamento vital, esclarecemos, informamos e educamos acerca de sintomas e sinais de fim de vida.

  • Apoiamos os cuidadores com estratégias de autocuidado, diligências práticas de planeamento e reorganização face às circunstâncias mutantes.

  • Sensibilizamos para novas perspectivas perante as circunstâncias desafiantes, nomeadamente a importância de ritualizar.

  • A nossa presença procura contribuir para gerar uma atmosfera mais serena, segura e aconchegante.


Os cuidados que prestamos podem abarcar os últimos dias e horas de vida, cuidados pós-morte, como seja a preparação do corpo, apoio nas cerimónias fúnebres e no processo de luto ao longo de todo o ciclo de vida.


Cada doula tem a sua especificidade e, em comunidade, também procuramos complementar-nos, por exemplo, uma colega que é fisioterapeuta, outra que é enfermeira, outra que se sente mais vocacionada para acompanhar numa perda gestacional ou numa perda animal.


O tipo de acompanhamento que desenvolvemos é feito à medida daquela pessoa/família e de acordo com a experiência da própria doula. Nesse sentido, no próximo artigo desenvolverei o conceito e modelo que proponho - Doula das Transições.


Doula Agostinha
Agostinha, a doula da comunidade onde cresci

Querida Agostinha,


Quando recebi a notícia da tua morte chovia abundantemente no Algarve, coisa rara nestas

terras. A Natureza espelhava já o choro que inundou a minha alma.


Vou sentir muitas saudades de ti! … mas sei onde encontrar-te… numa gamboeira florida, nos

passos estugados numa calçada, num bradar, numa gargalhada, na candura duns olhos, na

firmeza das decisões, num dobre ou num velar silencioso ou habitado por histórias vivas.


Para mim serás sempre uma árvore, alta, frondosa, uma árvore que cuida de todos os seres

que a rodeiam, com amor e atenção que são presença concreta, palpável.


Antes de uma árvore morrer ela passa tudo o que sabe às outras árvores e só depois cai, de pé.


Foste uma das pessoas que mais me inspirou na vida- tu e a nossa Teresa - deixaram-me um

legado que sinto muita honra em dar continuidade. Tu e a Teresa foram as doulas que conheci

na vida, com o vosso testemunho vivo aprendi a:


- A ver o invisível no visível

- A acolher a morte, fechando os olhos aos mortos e abrindo-os aos vivos

- A velar

- A ser presença, através do silêncio, da memória, do humor, da capacidade de permanecer

para além da dor porque partilhada ela se transfigura.


Contigo morre uma parte de mim e comigo fica parte de ti e é este este legado que quero

continuar a encarnar.


Agradeço-te tanto teres velado o meu pai na sua transição e cada uma das pessoas que

acompanhaste no curso da tua longa vida, grande como as tuas mãos, larga como os teus

braços.


Sei que a vida não te foi fácil mas não ficavas no sofrimento, tinhas sempre uma palavra de

ânimo, aguerrida e otimista para rematar a conversa.


Vou ter tantas saudades de ir à tua casa, puxar o cordel, bradar-te e ir entrando. Eras assim, tu

e o Primo João, uma casa sempre aberta. E uma casa que se dava, não há gamboas como as

tuas. Depois do meu pai eras tu que sempre mas guardavas. Para mim, as gamboas são sinal

da dádiva da tua vida aos outros. E foi assim até ao fim… No último dia em que nos vimos,

perguntaste se a nossa laranjeira ainda tinha laranjas…confirmando-te eu que não tinha, não

tiveste hesitação, quando demos por ti andavas, nem sei como, empoleirada na laranjeira a

apanhar laranjas para mim!!!


Dos dias em que nos despedimos lembro também que ensinaste até ao fim…o teu unguento

de hipericão que havias preparado para as dores.


…São assim as árvores, todo o tempo de vida é dádiva porque elas sabem o lugar que ocupam

no todo e assumem-no…e quando morrem continuam a alimentar a terra, são o húmus fértil

donde se gera a vida 😊 Trago-te no coração, fica em paz querida Agostinha!






bottom of page